a percepção de mais uma batalha perdida contra os próprios impulsos fez seus músculos se enrijecerem , enquanto o estômago ardia como se atravessado por uma corrente elétrica , carregando-a tal como um fio exposto , vibrando em ira e vivacidade. seus pensamentos , tudo menos indulgentes , orbitavam em torno da repulsa por sua falha e na abominação que acreditava encarnar quando confrontada com as feridas emocionais que ele parecia despertar com sua mera presença. o problema é você. a frase ecoava em sua mente , arrastando-a para um passado , onde em sua infância os fios dourados se tornavam pretos , e uma figura imponente pairava sobre ela , sufocando-a em submissão mental. as lágrimas infantis , pequenas , mas intensas , alimentando golpes emocionais que ainda reverberavam. podia quase sentir o gosto salobre na garganta antes de sacudir a cabeça , dispersando as memórias cáusticas.
seus olhos , ferinos e borbulhando com animosidade , fixavam-se com uma hostilidade peculiarmente reservada à figura loira. com uma calma traiçoeira que contradizia a eletricidade em seus nervos , repousou as mãos sobre a bancada. ele não merecia o privilégio de vê-la vulnerável , nem a satisfação de perceber o ímpeto visceral de estrangulá-lo que lhe aflorava. observou-o virar-se com desdém calculado , os movimentos meticulosamente ensaiados , enquanto um sorriso enviesado , desprovido de calor , curvou seus lábios. sua voz emergiu doce , quase melíflua , mas carregada de um veneno que nenhum esforço fazia questão de mascarar. ❝ mais engraçado e fascinante é como você parece saber tanto sobre mim a ponto de formular uma análise tão detalhada. talvez devesse considerar uma carreira em psicologia , porque , no direito , sabemos a fraude que é. ❞ seu tom , cortante , ecoava em sarcasmo.
❝ não perguntei sobre como brontë considera o amor uma força poderosa , arrebatadora e destrutiva , uma tempestade que transcende as normas sociais e o bem-estar pessoal. nem sobre como shakespeare o define como complexo , imperfeito e intrínseco ao ser humano. muito menos sobre a visão de austen , que o interpreta como ações e não palavras , respeito mútuo e entendimento profundo. perguntei o que você considera ser o amor , christopher. ❞ os olhos semicerraram num gesto de calculada ironia. ❝ talvez tolstói seja mais do seu gosto. ele o descreve como o ato de fazer o bem , a essência da vida , a fundação do mundo , uma força universalmente reconhecível , impossível de não ser compreendida. irônico , não ? o completo oposto de sua ladainha vazia. então , diga-me , como essas citações sustentariam seu ponto falho ? ❞ as palavras eram carregadas com o desprezo acumulado — passado , presente e , inevitavelmente , futuro.
❝ descrever utopias é infinitamente mais fácil do que vivê-las. o 'amor' é um desejo fabricado pelos que buscam preencher o vazio deixado pela verdadeira natureza humana — crueldade , desprezo e obrigações que nos afastam do que realmente queremos. no fim, não passa de um conceito , uma ferramenta para subjugar em nome de algo inalcançável. ❞ as aspas eram acompanhadas por um olhar incisivo , que estudava as reações alheias como um predador observando sua presa. ❝ ou talvez seja fácil falar do amor em ficção , como tantos antes de nós fizeram. mas , você não pode descrevê-lo na realidade , na prática , d'amato , porque nunca o sentiu. ❞ girou o líquido rubi lentamente no copo entre seus dedos antes de elevá-lo , canalizando em cada movimento o desdém crescente.
❝ não sou eu quem se acha detentora de uma razão suprema para discursar sobre algo que nunca experimentei. essa é a sua arrogância , não a minha. ❞ abaixando o vidro com delicadeza , permitiu a distância entre eles ser preenchida pela tensão. ❝ e não coloco a minha verdade acima da de ninguém , exceto daqueles que são moralmente inferiores a mim. isso se chama ter princípios , deveria experimentar tê-los , talvez assim criasse algo próximo de uma consciência. ❞ era uma dança de palavras afiadas como navalhas , cada uma estrategicamente lançada para encontrar brechas na impecável fachada do adversário. por um instante ponderou continuar com o assunto ou simplesmente levantar-se e dar as costas , quando a menção do próprio fracasso despertou ódio em suas veias. neslihan encontraria a ferida de christopher e a faria sangrar como nunca antes. ❝ você é desprezível. quantas pessoas sabem do verdadeiro monstro que você é ? ou prefere se esconder atrás dessa empáfia calculada , apenas para evitar sufocar por tudo que reprime ? ❞ o gosto do negroni parecia menos amargo do que o que sua fala deixava no ar. não se tratava apenas do orgulho ferido , mas a memória viva de tudo que kadir şahverdi havia conquistado às custas de inocentes , auxiliado pelos homens rizzo , era como derramar ácido em sua alma , em seu senso. algo que o outro seria incapaz de desenvolver nem mesmo em mil vindas ao plano terreno.
a verdade era , de longe , a coisa mais vulnerável a se compartilhar com alguém , e a sua a corroía em pequenas e dolorosas doses , não permitiria que ele tivesse aquele tipo de influência sob si. ❝ um brinde à miséria , d’amato , que ela continue sendo a musa inspiradora da sua eterna arrogância. ❞ sorveu outro gole elegante , antes de repetir a saudação sem a mesma teatralidade. por uns instantes repousou o cenho sobre os dígitos sustentados pelos braços apoiados contra a bancada , como se apenas assim pudesse conter o caos em seu interior.
A princípio, a risada não havia chamado a atenção de Christopher, afinal, haviam pessoas demais ali e o alvo de riso podia estar em qualquer lugar, porém a voz que se fez audível no segundo seguinte, para seu total desprazer, era de alguém que ele conhecia bem o suficiente para saber que toda aquela ironia contida era dirigida a ele.
Devagar, se virou na direção dela, não fazendo a menor questão de esconder a expressão clara de descontentamento em seu rosto. "Só uma pessoa como você, Gokçe, para achar que alguém precisa ser autoridade para falar sobre algo que, no fim das contas, é inerente a cada ser humano." Sarcasmo se mesclava ao desprezo emoldurando cada palavra pronunciada em seu tom naturalmente calmo enquanto fixava seus olhos no rosto alheio. Para ele, não havia a menor possibilidade de alguém conseguir falar com exatidão sobre o sentimento, afinal, cada um o sentia de uma forma, por isso o amor era retratado de tantas formas diferentes em livros e canções. E era exatamente por isso que o considerava um sentimento tão bonito: pela sua forma de se adaptar.
O indicador circulava a circunferência do copo enquanto ele esperava, da forma mais calma possível, ela falar. Vez ou outra, arqueava a sobrancelha conforme a irônia parecia crescer em suas declarações. Quase soltou um palavrão ao vê-la ajustar a postura, como se ela o estivesse dispensando de uma conversa da qual ela sequer fazia parte a princípio. Em diferentes ocasiões, ele sequer se daria ao trabalho de respondê-la, mas naquele dia ele já havia engolido seu desconforto vezes o suficiente a ponto de se recusar a fazê-lo de novo. Em busca de manter os nervos em seus devidos lugar, Christopher levou o copo aos lábios, sorvendo o restante do whisky em um gole único, e logo após, gesticulou para que o garçom efetuasse a reposição de bebida. Ela podia considerar o assunto encerrado, mas ele não.
"Engraçado como um elogio vindo da pessoa errada é capaz de causar tanto desconforto, não acha?" Comentou em tom divertido, apenas porque sabia que iria incomoda-la ainda mais. Claro que ele sabia que os tais elogios haviam sido feitos de forma sarcástica, mas se recusava a cair na provocação. "Sabe, eu poderia citar trechos e mais trechos de renomados nomes da literatura, músicas de todos os estilos possíveis que falam sobre o amor, mas ainda assim você não iria compreender, porque no fim das contas, o problema não é na existência ou não do sentimento, o problema é você." Agradeceu o garçom com um aceno breve de cabeça ao ter o copo preenchido novamente. "Você que acredita ser tão dona da verdade que quando acha alguém que pensa e age diferente de você já se acha no pleno direito de se colocar como certa." Independente da irritação que sentia, Christopher manteve o tom ameno e os sentimentos devidamente camuflados em uma máscara de tranquilidade que já estava mais do que habituado em utilizar. "Fora que é extremamente engraçado você se achar no direito de falar sobre fracasso comigo, já que visivelmente fica remoendo o seu até hoje." Sim, aquele havia sido um golpe baixo, afinal. ele entendia perfeitamente a frustração que perder algo para uma figura paterna, mas naquele momento pouco importava. Ela até poderia ter sucesso em tornar o dia dele ainda mais miserável, mas ele não se sentiria miserável sozinho. "Cheers to our own misery!" Ergueu o copo como se estivessem brindando e mais uma vez o levou aos lábios, sorvendo um longo gole e então virou-se novamente para frente, decidido a não dirigir a palavra à ela novamente.