Angelina já estava acostumada a ver Eliza no modo comando. A maneira como a amiga se movia, o tom certeiro da voz, os olhos que mal piscavam. Era como ver alguém tentando manter o mundo inteiro colado com fita adesiva e fazendo um bom trabalho, mesmo que tudo estivesse prestes a desmoronar. Só que, ao mencionar as observações comportamentais que vinha fazendo em seu caderno, Angel notou a mudança imediata na postura da outra. Ela ficaria do mesmo jeito. Angelina inclinou levemente a cabeça, sem responder de imediato. — Fica tranquila, não é nada invasivo. Só percepções soltas, sabe? — Sorriu com leveza, tentando dissipar a tensão. Angel deu um sorriso enviesado. — Com um índice de confiança desse, acho que você deveria ser contratada por um hospital quando a gente sair daqui. — Angelina a olhou por um segundo mais longo. Não sabia como Eliza fazia isso de continuar prometendo coisas como se fosse a única responsável por manter todos inteiros. Mas algo dentro dela admirava profundamente aquela coragem. A estudante estendeu a mão, pousando de leve sobre o joelho da amiga. — Sua promessa vale muito pra mim, mas você não precisa prometer o tempo todo. Tá tudo bem. — Angelina deu uma risadinha, apesar de tudo. — Eu meio que odeio essa ideia e ao mesmo tempo, parte de mim quer ver como vai ser. Tipo, que tipo de gente dança no meio do fim do mundo? — Ergueu as sobrancelhas, encarando Eliza com uma expressão curiosa, como se estivesse convidando a amiga a rir com ela da tragédia.
A ideia de Angel estava fazendo completo sentido na mente de Eliza até que a colega completou sua explicação com algo que a deixou em alerta. "Observações sobre comportamento? Como seria esse processo exatamente?" Por um segundo, seu corpo enrijeceu com a possibilidade de que Angel tivesse presenciado o momento em que sua ficha finalmente caiu quanto ao resgate. Não queria que aquilo se espalhasse. Não gostaria que todos ficassem sabendo sobre suas crises e que ela não era tão pé no chão quanto imaginavam. "Consigo entender completamente. Também faço isso, mas estava anotando tudo em caixas mentais. Isso aqui é muito mais seguro. Posso provar, ponto por ponto, para cada um dos que não estão fazendo o que eu pedi." Um tanto controladora demais da sua parte, mas não tinha quem tirasse da mente de Liz que só conseguiriam se manter vivos por mais tempo ali se seguissem suas ordens corretamente. A sobrevivência dependia de estrutura. Por isso que também não podia mais correr o risco de sair do eixo novamente. Perder a estrutura poderia colocar todo mundo em risco. "Noventa e seis por cento de certeza. Eu já li muito sobre essas folhas que encontrei e consegui reconhecer as similaridades com as descrições dos estudos. O formato, a textura, o cheiro. Tudo bate! Elas tem propriedades que são cicatrizantes, antissépticas e ajudam a conter hemorragias leves. Só preciso fazer o remédio com água quente e vão ajudar." Ao ouvir o nome do manual sugerido pela amiga, Liz conseguiu abrir um pequeno sorriso e agradeceu com bom humor por ter a certeza que seu nome estaria nos créditos. "Vai funcionar, Angel. Não sei como vamos sair daqui, mas enquanto eu puder fazer alguma coisa, vamos sobreviver. Prometo para você. E eu acho que minha promessa precisa valer de alguma coisa, porque não me lembro de ter falhado nenhuma vez." Talvez tivesse, sim. Uma ou duas vezes. Mas não era o tipo de coisa que ela estava disposta a admitir para alguém. "Ah, e também vou precisar do seu caderno e anotações para organizar o tal baile essa semana." Rolou os olhos, já deixando claro para a amiga como nada fazia sentido aos seus olhos. "Como se aquele jogo idiota já não tivesse dado problema o suficiente."
❛ i don't like where this is going. ❜
Estava organizando velas em pequenos potes improvisados com o fundo de garrafas cortadas. Parou por um segundo, o maxilar travado, o olhar fixo em uma vela ainda apagada. Então, inspirou fundo. — Não me diga que também está entrando na ideia de que tem alguma coisa assombrando a cabana. — Angelina arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços. — Não pode ser que metade das pessoas aqui esteja tendo alucinações ao mesmo tempo. Isso tem nome, se chama histeria coletiva, trauma coletivo. Algo assim. — Houve um silêncio entre elas. Não era um silêncio hostil, mas carregado de preocupação. Ela ainda segurava uma das velas, agora tremendo levemente nas mãos. Tentava manter a compostura, mas o medo já estava infiltrado nas frestas da lógica porque ela também não conseguia dormir a noite por ter pesadelos. — Só me promete uma coisa. — Pediu, em voz baixa. — Que se tudo isso… continuar a piorar, você vai continuar falando comigo. Mesmo que eu diga que não quero ouvir.
Angelina não costumava chamar Eliza sem propósito. Mas aquele momento parecia oportuno, talvez até necessário. Enquanto a organização da cabana caminhava de forma surpreendentemente funcional. Era como se o ato de anotar e catalogar fosse a única maneira de se manter inteira. Liz era uma das poucas pessoas ali que realmente entendia a importância de manter algum tipo de estrutura física ou mental. Assim que ela comentou sobre o caderno, Angel abriu um sorriso pequeno, mas genuíno. — Sim, tem tudo aqui. Grupos, tarefas, o que conseguimos por dia… Até algumas observações sobre comportamento, mas isso é a parte. Sou jornalista, afinal. Faz parte documentar até o que não querem. — Era como estar de volta a alguma sala de aula, dividindo ideias para um projeto final. Só que, agora, o projeto era sobreviver. — Acho que é uma forma de manter a cabeça ocupada e de não esquecer nada importante. — Havia um humor leve em sua voz, mas também tinha a resignação. A realidade estava muito distante da viagem ecológica que imaginara. Quando Eliza mencionou os remédios naturais, ela observou com uma curiosidade genuína. — Tem gente que não fala, mas tá sentindo dor o tempo todo. E manter todo mundo de pé ajuda a manter a calma geral. Espero que ajude mesmo. Tem certeza que as folhas são seguras? — Fez uma pausa, coçando a testa com o cabo do lápis. Depois, olhou para o caderno nas mãos da amiga, com um sorrisinho. — Se eu conseguir sair daqui viva, esse manual já tem até nome. ‘Sobrevivendo com Estilo: Guia de Crise da Floresta’. E claro, seu nome vai estar nos créditos. — Brincou, ainda que no fundo houvesse algo verdadeiro no comentário. A ideia de documentar tudo parecia algo magnifico, mesmo que nunca fosse contar em voz alta isso para alguém além de Liz. Sabia não poderia ser bem recebido registrar todo aquele sofrimento. — Se nada mais funcionar… Bom, pelo menos vamos deixar uma história organizada para alguém encontrar.
Ao que tudo indicava, Eliza estava satisfeita com o que haviam conseguido até ali. A cabana estava ajeitada da melhor forma possível, dentro das limitações que tinham, e os grupos seguiam funcionando como o planejado, realizando suas tarefas. Estavam mantendo a ordem e para Liz, isso significava manter também um pouco de sanidade. Haviam sim alguns que insistiam em dizer que ouviam vozes vindas do segundo andar da cabana, mas Eliza sempre tratava de encerrar o assunto rapidamente. Afirmava que o vento entre as frestas da janela improvisada ou algum pássaro desconhecido poderiam ser confundidos com vozes. E que, portanto, não havia razão para se alarmarem. Quando foi chamada por Angelina, estava a caminho do lugar onde havia encontrado folhas para remédios naturais, mas não viu problema em atrasar um pouco para ouvi-la.
Já tinha visto aquele caderno utilizado por Angel antes. Havia até se identificado com a ideia da amiga, pois apesar das motivações diferentes, Liz tinha o mesmo desejo por informação que ela e também gostava de organizar tudo que tinha descoberto nos livros. "É mesmo?!" Arqueou as sobrancelhas em surpresa e se animou em deixar a tarefa anterior de lado para poder ver a maneira como Angel estava organizando tudo. "Isso é perfeito. Assim vamos ter uma noção exata do que podemos usar por dia e quanto precisamos repor." Pegou o caderno da estudante sem pedir e começou a folheá-lo. "Vamos fazer isso com a comida também! E com os remédios que eu vou fazer. Encontrei algumas folhas que funcionam para remédios naturais e vai ajudar na cicatrização dos machucados mais sérios. Não dá para fazer milagres, então ossos quebrados não se juntarão de uma hora para outra, mas acho que consigo evitar que sofram com uma inflamação grave até o resgate chegar." Explicou, conforme folheava o caderno para ver o que mais Angelina tinha documentado. A ideia e técnicas de organização eram ótimas e estava orgulhosa dela. "Você vai querer publicar o manual depois que sairmos daqui? Espero ganhar meus créditos." Acompanhou o humor da amiga, mesmo sabendo que não havia nada de realmente engraçado no motivo para estarem fazendo tudo isso.
O caderno que deveria estar cheio de impressões sobre paisagens espanholas, descrições de comidas e piadas internas com os amigos, agora estava repleto de anotações frias sobre sobrevivência. Angeline estava sentada em um canto da cabana, o caderno apoiado no colo, os dedos manchados de tinta. O espaço ao seu redor estava coberto de folhas soltas e páginas preenchidas com listas detalhadas: tarefas, suprimentos. Angel ergueu os olhos rapidamente para ver @ssquirrzl passando por ali. — Psiu. — Riu pelo nariz enquanto a chamava, fechando o caderno por um momento e passando os dedos pela capa já um pouco desgastada. — Já que você insiste em manter tudo em ordem... Estou documentando até a quantidade de lenha que a gente pegou ontem. — Ela gesticulou ao redor. — Já tem um título pronto: ‘O Manual Definitivo de Como Não Morrer na Floresta’." — O tom dela era meio cansado, mas carregava um toque de humor. — Felizmente trouxe dois cadernos. Eu tinha planejado registrar a viagem de uma maneira completamente diferente, agora é praticamente um guia de sobrevivência.