Não, não, muito cafona, apesar de sempre ter tido certa habilidade para breguices…
Nunca soube direito como se inicia um diário. Menos ainda como se começa com aquele clichê de “querido diário” — soa como se eu escrevesse para alguém, quando na verdade escrevo para mim mesma, sobre ele, é claro. Deixe-me tentar outra vez.
Querida eu, que insiste em complicar o simples…
Deixei de ser a menina dos olhos dele. Ele não disse com palavras, mas sempre tive esse talento questionável de ler silêncios e preencher as entrelinhas — um hábito cultivado que, supostamente, deveria nos proteger de corações partidos. Engraçado, não tem funcionado muito bem, confesso. Eu sei. Talvez ele também saiba. A verdade é que nosso amor se amansou. Virou aquela calmaria confortável, como a brisa fresca das manhãs que se alongam preguiçosas, com o cheiro do café recém-passado e o silêncio doce de quem aprendeu a gostar do tédio da solitude. Nosso amor, querida eu, tornou-se isso há tempos. E eu ainda teimo em chamar de amor, pois é o que sinto. Quanto a ele… talvez reste um carinho morno, uma consideração educada por tudo o que vivemos. Às vezes até, ouso pensar que o que sobra é só conveniência, talvez comodismo. Por que é isso que as pessoas fazem, não é? Voltam ao que conhecem quando a vida se torna vazia demais… ou insuportavelmente cheia. Extremos. Sou o ponto de conforto dele. E nós duas sempre achamos isso bonito, não é? Sei que você está aí, sorrindo de canto, se deliciando com a ironia, achando graça dessa nossa mania de ver poesia na melancolia. Para alguns, ser o lugar seguro de alguém pode parecer desolador, como se você deixasse de ser alguém e se tornasse apenas uma função, mas não para nós. Existe algo genuíno e poderoso em ser o que quer que ele precise. (Querida eu safada, por favor, não malicie essa maldita frase). E assim seguimos…
Pensei em escrever para Chico e Zé, perguntar o que diriam sobre esse amor tão plácido, tão… contido, para que me ajudassem a colocar em ordem essa serenidade de amar o que já não queima, mas, no fundo, sei que só estou escrevendo para mim, o que futuramente entenderei como uma carta de rememoração sobre o sentimento do que foi, o que ficou, o que mudou — e, talvez, exorcizar esse tolo medo do que ainda pode ser, enquanto peço baixinho, feito prece sussurrada para um santo que não sei o nome, que de algum jeito, nós nunca deixemos de ser a menina daqueles lindos olhos — os mais belos olhos que já vi: os dele.
— b.m
Nunca me fiz de rogada, a verdade é que, antes mesmo dele eu já ansiava. Ansiava por alguém, por algo. É um tanto clichê redigir e conduzir os ideais de uma garota não tão comum que sentia não encaixar-se em um mundo tão… tão mundo, mas a verdade que pairava sobre mim é que o interno nunca foi interessante o suficiente e aprendi cedo demais que o externo era o que destacaria-se perante uma sociedade tão superficial e, sorte a minha ser tão bela. Modéstia à parte eu era ridiculamente bonita, com meus longos cabelos cor de laranja, olhos profundamente azuis, sardas que exibiam-se angelicalmente sobre as maçãs de meu rosto e contornavam delicadamente meu nariz empinado. Meu corpo? Esbelto com curvas estrategicamente postas para agradar os olhos até dos mais exigentes, mas nada disso valia-me, já que a única coisa do qual tudo isso me proporcionou foram noites longas remoendo amargamente um desastre natural das palavras não ditas àquele imbecil.
A verdade é que assustava-me a intensidade com o qual ele me olhava. Seu olhar tão impetuoso sobre mim, fazia-me queimar sobre minha própria pele e querer correr em busca de algum refúgio desconhecido que me protegesse de qualquer decepção, mas sinceramente? Não reconhecia qual.
[...]
Eu desejava tão intensamente que ele soubesse todos os pormenores que dedicava à ele, sem sequer saber que fazia por ele. Uma playlist no spotify, um livro ou outro, até mesmo minhas desventuras noturnas em meio a um gole ou outro de uma cerveja gelada concluíam-se no mesmo ritual, o de ouvir alguma música estúpida que declarasse inverdades sexuais… me lembravam ele. Não que o visse apenas dessa forma, mas CARALHOOO! Por Hades, querido!!! O que me tomou foi muito além da minha própria cerne, foi minha alma… até que comecei a protagonizar-me em cartas enormes que te escrevi e nunca as enviei. Sempre fui humilde a ponto de entender que nunca possui tino para a escrita, diferente de você, mas em meio às minhas inúmeras tentativas, te escrevi.
— b.m
Escrevo-lhe. Desculpe-me por minha impaciência, mas durante um ano inteiro estive inebriada de esperança; acaso sou culpada de não poder agora suportar sequer um dia de dúvida? Agora que o senhor chegou, talvez já tenha mudado suas intenções. Sendo, assim, esta carta lhe dirá que eu não me queixo nem o culpo. Não o culpo por não ter domínio sobre o seu coração; este é o meu destino!
Oh, you fill my head with pieces of a song I can't get out!
76 posts