Eu mal sabia que minha última tentativa, antes de, por fim desistir, por concluir tamanha estupidez e ridicularidade, esta minhas mesmas palavras o fariam ver-me como uma farsa, tal qual nunca fui, não com você. O único.
Seria possível? Isto fazia de mim uma tola? Por fantasiar tantas coisas, todas elas onde você se encontraria ao meu lado, independente do que quer que estivesse fazendo. Inicialmente cogitei ser egoísmo, mas depois me aliviei da ideia de que se o fosse, pagaria qualquer preço para que eu obtivesse nem que fosse o mínimo, o mínimo sorriso, o mínimo oi, o mínimo vislumbre de andar e olhar, o mínimo de existência que eu pudesse presenciar de você que me mantinha assim, viva e tão certa de que eu respirava para contemplar outra força da natureza qual sobrepunha a minha própria. Engraçado pensar que, bem antes mesmo de declarar inverdades sobre mim, eu mesma já havia cedido sem o conhecimento de que isso fosse possível. — b.m
Eu vejo você em tudo!
Hesitei incontáveis vezes antes de traçar a primeira palavra desta carta. Durante dias, vaguei entre pensamentos desordenados e sentimentos que se recusavam a ser domados pela linguagem. Como explicar algo que nem eu mesma compreendo? Como traduzir uma dor que me escapa toda vez que tento agarrá-la? Tenho medo de que estejamos distantes demais para que qualquer explicação faça diferença e isso me dói mais do que posso admitir. E eu lamento por isso.
Mas, Chico, ontem à noite, sonhei.
Depois de um tempo que já me parecia eterno, sonhei. Tu te lembras das minhas lamúrias constantes, da minha queixa desmedida de que apenas sabia contar os dias quando as noites me ofertavam sonhos? Pois bem, recomecei. Na noite um de 9 de fevereiro, o tempo voltou a fluir. No entanto, não me apresso em te ofertar consolo, pois o que tenho a contar não é notícia inteiramente boa. Te explico.
Eu amava, Chico.
Amava com a devoção impetuosa e incontrolável de uma menina que, desconhecendo os limites do próprio coração, atira-se ao abismo do sentir sem temor algum. Embriaguei-me no êxtase desse amor e, sem pudor ou prudência, vivi. Mergulhei nesse amor sem reservas, sem questionar, sem me proteger. Deixei que esse amor me tomasse por inteira, que me fizesse perder o medo e o juízo. Voei como quem ignora que asas também se partem. Fui feliz, Chico. Intensamente, absolutamente, irracionalmente feliz. E, por Deus, eu sentia! Em cada fibra do meu ser, em cada batida ansiosa do meu peito, eu sentia. O amor me incendiava, consumia-me até o cerne, e eu, tola, acreditei ser amada na mesma medida.
Mas a vida, essa grande ironista, reserva-nos formas brutais de provar que tudo o que acreditamos viver pode não ter passado de um sussurro efêmero no vento. Que anos podem não ser mais que fragmentos de uma ilusão mal urdida. Que todo aprendizado se desfaz ao primeiro toque de um coração ingênuo demais para guardá-lo. E, no fim, Chico, tudo se reduziu a isto: um amor juvenil, um devaneio imaturo, um delírio insustentável.
E eu, louca, acreditei.
Deixei um convite sobre a mesa dele. Escrito com calma, com letras desenhadas como se cada traço pudesse garantir o destino que eu tanto queria: “Encontre-me às duas, em frente à Duomo de Florença. Vista seu melhor terno.”
Já consegues antever o desfecho trágico, não é? Mas eu, cega na minha esperança infantil, não. Eu esperançava, Chico! E esperançava tanto que me vesti para um sonho. Escolhi meu vestido mais belo, ajeitei os cabelos com esmero, colori os lábios com a cor dele e pisei em saltos finos como se estivesse à altura da ocasião — a ocasião do meu próprio casamento.
Não me alongarei nos detalhes, pois já não sei se valeriam a pena. Mas ele veio, Chico. Ele veio. E estava belo, como eu ousara imaginar. Quisera eu poder dizer que vislumbrei a imagem de um anjo quando o vi subir os degraus da catedral. Mas não. Associar tamanha beleza a algo celestial seria heresia.
Eu sonhei, Chico.
E cada degrau que ele subia era como uma lâmina a me atravessar o peito. O tempo se dissolvia, e a dor que ali nascia parecia anterior à minha própria existência, como se eu tivesse vindo ao mundo para senti-la. Como se fosse uma sina. Como se Deus, do alto de Seu trono, observasse minha desgraça com deleite silencioso, sem intenção alguma de intervir.
Foi belo, Chico.
Tão belo que chorei.
E então acordei.
Acordei no exato instante em que a porta dos fundos se fechava, selando o destino do que nunca fora verdadeiramente nosso. Um fim tão absoluto quanto o silêncio após um último suspiro. O fim de um amor juvenil, de um verão desfeito em outono. E o que restou de tudo isso? Apenas uma carta, largada sobre a mesa ao lado da minha cama.
O papel, Chico, trazia uma caligrafia diferente da minha. Apressada, desprovida de zelo ou de qualquer vestígio de afeto. Não havia hesitação nem doçura, apenas um veredito cruel e inapelável:
“Sinto lhe decepcionar, mas não podemos nos casar! Meu coração pensou que te pertencesse, mas ele se enganou! Até nunca mais!”
E assim, Chico, acabou-se.
Com amor, sua Heresia.
— b.m
Oh, you fill my head with pieces of a song I can't get out!
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